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domingo, 20 de novembro de 2011


SÃO NEM DA ROCINHA

Alguém leu o artigo de Francisco Bosco publicado no Segundo Caderno d’O GLOBO? Não resisto a postá-lo abaixo na íntegra, em vermelho, entremeado por meus comentários, em azul.

Não quero diminuir a importância da ocupação da Rocinha pela polícia, tampouco a política das UPPs em geral. Comemoro ambas. Mas devo começar essa coluna com uma frase estranha, e entretanto necessária para encaminhar o pensamento estrutural que deve orientar a sociedade brasileira nesse momento: embora legal, a prisão de Nem, num sentido profundo, é injusta.

O articulista alerta que sua frase é “estranha”, ensaiando uma suposta humildade, para logo a seguir alardeá-la como “necessária para encaminhar o pensamento estrutural que deve orientar a sociedade brasileira nesse momento”. Pretensão pouca é bobagem, não é mesmo? Mas a frase é mesmo antológica ao desdenhar da lei, esse mero “detalhe” formal a que estamos sujeitos, e qualificar a prisão de um criminoso como Nem de “injusta”. Seguimos.

Um imenso contingente de jovens, quase todos pretos (ou pretos simbólicos, como Nem), compete em condições radicalmente desiguais com jovens de classe média ou ricos; são humilhados pela polícia; têm sua cidadania esvaziada pela precariedade de serviços públicos fundamentais (saúde, saneamento etc); são quase sempre invisibilizados pelo olhar do outro; não são reconhecidos, em suma, pelo Estado, nem pela sociedade. Por que então deveriam respeitar um pacto social que não os respeita? Impelidos à criminalidade, são presos ou mortos pela polícia. Isso é justo?

O autor quer brincar de discriminação racial e luta de classes. Aqueles nascidos em condições menos favorecidas são "impelidos" para a criminalidade, como se não houvesse responsabilidade individual, escolha, moral, honra, educação, caráter... o articulista deveria saber que o mundo é mesmo radicalmente desigual. Sempre foi e ainda deve permanecer assim por muito tempo, a não ser em Cuba ou na China, onde uma pequena elite se beneficia de bens de consumo e das benesses do Estado, enquanto a imensa massa compartilha da mesma pobreza, falta de liberdade e de cidadania. Todos devem respeito ao pacto social (leia-se LEI) pois ela vale para todos. Isso serve para brancos e pretos, pobres e ricos.

Eis a diferença entre os modos como a direita e a esquerda compreendem o problema da criminalidade. Para a direita, o crime é sobretudo uma decisão da ordem da escolha moral individual. Basta ver a capa da revista “Veja” dessa semana: um personagem de novela, uma mulher de meiaidade, com macacão sujo e uma ferramenta na mão, olhar sofrido e firme, encara quem a olha. É o elogio da integridade moral individual nos trabalhadores de classes sociais inferiores. Mas o que, no fundo, essa capa diz é o seguinte: há pessoas que, mesmo desfavorecidas socialmente na largada, recusam-se a quebrar as regras do jogo e trabalham obstinadamente para melhorar de vida. Logo, os criminosos são esses seres abjetos a quem falta essa grandeza moral. Conclusão: a culpa é deles mesmos, que portanto devem ser punidos com rigor pela sociedade. É fácil pensar assim, responsabilizando o outro, e não a sociedade em seu funcionamento geral (o que inclui cada um de nós, sendo essa a visão da esquerda).

Lá vem aquele velho papo da esquerda que se acha moralmente superior pois supostamente enxerga o problema como um todo: a culpa é do sistema, da sociedade, de todos nós. Dividimos entre todos e assim tudo se dilui. E se a culpa é de toda a sociedade, não é de ninguém individualmente, correto? Assim, nunca condenaremos ninguém e ninguém será responsabilizado por seus atos, por piores que sejam. É um raciocínio tão primário quanto equivocado. Mas a direita é má! Ela exige responsabilidade individual pelas escolhas e cobra punição de assassinos (!).

Alguns dias antes de ser preso, Nem conversou com a jornalista Ruth de Aquino, da revista “Época”. A fala de Nem não traz nenhum dado inédito ou interpretação nova do problema; além disso, é possível que, nela, Nem esteja querendo influenciar a opinião pública a seu favor. Mas mesmo que ela seja forjada, é autêntica; mesmo que seja mentirosa, é verdadeira. Há duas linhas que ela estabelece. Numa delas, Nem se apresenta como uma versão do “bandido justo”, que cuida da comunidade (“Mando para a casa de recuperação na Cidade de Deus garotas prostitutas, meninos viciados”) e separa, no interior do crime, as dimensões do pragmático e da crueldade, rechaçando essa última (“Nada de atirar em policial que entra na favela. São todos pais de família, vêm para cá mandados”). Na outra linha, ele se revela um traficante lúcido, crítico da estrutura social e a favor da política de segurança do Estado: “A UPP é um projeto excelente.” E ainda: “Meu ídolo é o Lula. Ele foi quem combateu o crime com mais sucesso. Por causa do PAC da Rocinha. Cinquenta dos meus homens saíram do tráfico para trabalhar nas obras. Sabe quantos voltaram para o crime? Nenhum. Porque viram que tinham trabalho e futuro na construção civil.”

Incrível o malabarismo intelectual. Francisco Bosco admite que Nem possa estar mentindo ou querendo influenciar a opinião pública a seu favor, mas mesmo assim qualifica a entrevista como “autêntica”, ainda que forjada, e “verdadeira”, ainda que mentirosa. Nem tem “consciência social”, é um “lúcido” eleitor de Lula e isso deve bastar para entendê-lo e de alguma forma justificar os seus malfeitos.

Dois pontos fundamentais foram tocados aí. Conta-se que Nem seria, na verdade, um bandido sanguinário, desses que ri enquanto toca fogo em alguém nos pavorosos “microondas” das favelas. Não sei se é verdade, mas o argumento é usado para defender que não se deve ter pena ao julgar, sentenciar, ou mesmo matar sem julgamento um criminoso como ele. A versão do bom bandido, apresentada por ele, serviria para amenizar essa visão. Seja como for, a versão “bandido sanguinário” é, justamente, aquela em que se revela melhor a estrutura social perversa de que o crime deriva: como esperar que um sujeito humilhado, desprezado, agredido, possa ser racional e calculista no crime? O seu ódio é a resposta simétrica à humilhação sofrida. Quem pode ser racional e calculista no crime são os sujeitos para quem o crime não resulta de violências sofridas no mais íntimo de sua identidade, mas aqueles para quem o crime é uma escolha possível entre outras, ou seja: banqueiros ladrões, políticos corruptos etc.

O articulista santificou o bandido! Se ele for um “bom bandido”, pela estranha inversão de valores proposta, então vamos julgá-lo com carinho. Se ele for mesmo “mau”, então ele estava justificado ao cometer crimes! Se vale para Nem, vale para qualquer tipo de criminoso, incluindo terroristas! Por isso mesmo a esquerda adora perdoar terroristas. Eles estão lutando por uma causa, entendem? O ódio é justificado e a vitima é sempre culpada!

Quando Nem diz que perdeu seus homens para o PAC, a implicação é a mesma: se a sociedade oferecer emprego e cidadania, dificilmente as pessoas optarão pela vida do crime. Aí sim será legítimo falar de escolha individual moral. Os que têm alternativa digna e optam pelo crime, esses sim serão presos com toda a justiça. Muito se falou sobre o valor simbólico da prisão de Nem. Mas chefões do tráfico são presos ou mortos há décadas. Valor simbólico deve ser atribuído ao feito que consagra uma mudança estrutural, ou abre caminho a ela. Valor simbólico terão as prisões de políticos corruptos e banqueiros ladrões (aqui é preciso ser justo: a revista “Veja” contribui intensamente nesse sentido). Valor simbólico terá a entrada em vigor da lei da Ficha Limpa.

Deixa eu ver se eu entendi: funciona como uma chantagem? Se a sociedade não me oferecer emprego e cidadania, então eu posso optar pela vida do crime? Mas se eu sou rico e opto pelo crime, então devo ser condenado, sem perdão? Só porque sou rico? O artigo está brincando de luta de classes, de morro x asfalto. O rico que rouba é mau, o pobre que rouba, mata, trucida, é um coitado que foi levado a isso pelas desigualdades do mundo.

O artigo é quase uma justificativa do banditismo. Francisco Bosco “doura a pílula” do traficante-mor da Rocinha, porque ele pensa diferente, porque foi levado a isso pelo sistema, entendem? Onde fica o respeito à lei? Não fica. Pela ótica de Bosco, não há a mínima preocupação com a ordem legal.

Houvesse honestidade intelectual, deveria pesquisar a opinião da população sobre a polícia, separando as opiniões por renda e origem social. Mas Bosco não tem esses dados e recorre a uma ilação sem qualquer base: As pessoas pobres, faveladas, sem acesso aos serviços básicos do Estado, seriam contra o “sistema” e a polícia. Os ricos, que moram na zona sul e tem acesso a todos os bens de consumo e à cidadania plena, seriam a favor do “sistema” e da polícia. Isso não faz o menor sentido científico e não está apoiado em dados. Eu tenho outro dado para brincar: notem o número de denúncias de moradores da Rocinha que levaram a polícia a descobrir o paiol de armas do tráfico...

Os moradores da própria comunidade preferem a polícia a um traficante, mas isso ele não comenta,  é claro, preferindo seguir o novo santo brasileiro. São Nem da Rocinha! A que ponto chegamos.

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