CONTRIBUIÇÃO DO LEITOR

quarta-feira, 15 de junho de 2011

JAIR ELOI DE SOUZA*

                                                                                          CURIOSIDADES DO MEU SERTÃO


Nasci ouvindo a sonoridade lenta ou vexatória dos búzios no meu sertão, o gemido da cantadeira do carro de boi subindo e descendo ladeiras, resvalando nas empenas de serras no carrego de madeira, o paleio na estação da oralidade de um velho matuto comboieiro conhecido como ELOI DE SOUZA. Pertencia este, aos Gonçalves da Ribeira meã do Rio Piranhas, um clã de bravos sitiantes, homens do eito e da faina agropastoril, amansadores de poldros e burros brabos, personagem que sempre fora o lastro infomativo e cultural da universidade da vida campesina. De verve prosaica, poética e de uma jocosidade ímpar, de quem desde tenra idade, recebi conhecimentos aldeões, o que de melhor pode um provinciano receber dos seus ancestrais, sobre a tipificação da saga épica sertaneja, permeada de raridades costumeiras, dos mais distantes rincões do cinzento da caatinga e especialmente dos sertões do Seridó.

Dizia-me esse velho bardo e prosador da cena sertaneja, que nos primórdios, tudo não passava de um cenário de velhas tendas primitivas, construídas com forquilhas e linhas de aroeiras centenárias, caibros e ripas de pereiro da caatinga, trançadas de varas de mufumbo ribeirinho e cobertas com peles cruas de gado vacum, rebocadas com barro cabeça-de-gato, tão utilizado também no fabrico de loiças rudimentares, para cozimento de alimentos em fogão de trempe. Depois, os casebres de taipa com cobertura de toscas telhas, que em tempos não tão distantes, continuaram sendo  batidas na olaria de Zeca Socó, no barranco do riacho do Amparo. Dessa vertente, Trancei a silhueta de meus conhecimentos sobre esse encantador mundo rural, por via da oralidade, não só dos costumes desses homens, depois, no olhar aos que fazem parte da fauna e da flora dos descampados do tempo, e que notadamente despertam o gosto pelo telurismo da província do cinzento, um cênico marcante da caatinga nas terras do Seridó.

 A vida, nessa civilização chamada Seridó, começa para o cristão desde muito cedo, e é bem cenografada quando bate a quadra chuvosa. Primeiro, a alegria pelo aparecimento dos nimbos, escuros cúmulos que se esvaem no sopé molhando a terra estorricada, o plantio e a germinação de leguminosas, a expectativa de encontrar nas latadas de melancias as primeiras vingas e a ansiosa vontade que esses frutos alcancem a puberdade, para serem ferrados à unha, com as iniciais nomínicas a quem se destinam, praxe que ostenta o grau de consideração afetiva do lavrador para com os seus entes queridos, sejam parentes, amigos, compadres, filhos ou netos. O nascimento de bezerros, a solta dos gados no pasto, o casamento da primeira filha, a ordenação do padre na família, as festas juninas no outono da colheita, a pega do barbatão que nascera e se criara no catingote fechado, o resultado da peleja de velhos cantadores, são fatos dos mais evidenciados na crônica sertaneja. Porém, é no mundo que os desavisados do tempo chamam de irracional, que encontramos as preciosidades de hábitos.

A sururina não consegue ultrapassar a viuvez, após a morte de seu parceiro, o melhor alimento é a melancolia, o caminho mais curto para o calvário. A juriti escolhe a forquilha do mandacaru para fazer seu ninho, apara os espinhos naco a naco, faz a confecção em gravetos secos de jurema e forra-o com resíduos de capim panasco, cuja cidadela reprodutora é protegida da serpente pela tercitura espinhenta do caule principal da citada xerófila. O caburé de buraco enfrenta o sibilo e a gelidez da cruviana madrugadenha, sem abandonar o seu posto de vigilância na entrada do seu ninho, no formigueiro extinto, perorando no seu canto triste e solitário.

A misteriosa acauã só briga com a serpente se tiver a assistência de sua companheira, que lhe traz nos intervalos da contenda uma fécula amarela e deposita em seu bico, até hoje desconhecida. O tejuaçu ao ser ferido pela serpente procura o pinhão da caatinga para mordê-lo e colher o seu leite, pois lhe vale como antídoto. As seriemas quando vão fazer grande travessia à procura de alimento, o fazem em fila indiana, à ressonância de ecos individualizados, diferente da sinfonia babélica quando estão a matar uma serpente.

O pindurim na ribanceira do Rio Piranhas, faz seu ninho nos últimos artelhos da ingazeira ribeirinha, quando as águas em baixa nos fins da quadra chuvosa, a moda de um puçá para evitar qualquer predador, principalmente a salamandra d´água. Os periquitos fazem grandes travessias ao se aproximar a época da postura, a procura de cupim extinto para depositarem seus ovos nos sertões do Seridó.

A resistência das gatas mães ao atravessarem todo o leite do Rio Piranhas, quando das grandes cheias, quase um quilômetro d`água, segurando a pele do pescoço dos seus filhotes, de forma individualizada, fazendo cinco ou seis travessias, dependendo do número da prole, a salvos, retornam às casas de seus criadores, que depositaram-nos na margem oposta para se livrarem do incômodo dos bichanos.

Os nambus espanta boiada, nos ofertam duas particularidades; a primeira: ao nascer sempre em terreno inclinado, a ninhada já sai em correria e nunca mais tem contatos com seus pais. A segunda: não dormem de forma plena à noite, é corriqueiro se ouvir no silêncio das noites ou madrugadas, seu piado repetido, em razão de que, na manhã seguinte, uma vez alimentados na capoeira, tiram uma madorna nas sombras dos pequenos arbustos, em camas no chão varrido, em plena luz do dia. As abelhas de forma quase generalizada, ao pressentirem a chegada da quadra chuvosa, consumem o mel das cachopas em espaço de poucos dias, para dar lugar aos seus ovos, iniciando a reprodução da espécie.   

Da floração da barriguda, em plena lua setembrina dizem os mais afeitos a cena sertaneja, se ditam os preparativos para receber a quadra chuvosa ou a seca inclemente. Os umbuzeiros da caatinga, só produzem se seus tubérculos raizeiros estiverem supridos de água do inverno passado. O camará, arbusto comestível pelos gados, leva apenas três dias para enramar e florar, na caída das primeiras chuvas de mangas no cinzento da caatinga.

A taboca d`água só germina quando cai aguaceiro em demasia no sertão, em inverno normal não nasce, gerando um problema para a cambonge, um conhecido frango d`água, que só reproduz nos alagadiços e em temperaturas altas. O golfe ou aguapé sertanejo, (vitória régia nordestina) só prospera ou germina em água doce, e sua floração perfumada dita o balé das aves aquáticas em cio, um espetáculo de sincronia coreográfica de beleza inigualável, tudo isso se pode assistir ao vivo, numa civilização chamada Seridó, basta ultrapassar a chã da Serra do Doutor, a última silhueta da Borborema Potiguar.

Sábado do mês das noivas, em lua cheia, tirava eu uma madorna no copiar da Chã da Graúna, visão prateada do mundo naquelas cercanias, avistava a brancura das acauãs em canto, nos eucaliptos decenários. Era de 2009.

  *É Professor do Curso de Direito da UFRN.

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