CONTRIBUIÇÃO DO DR. JAIR

quarta-feira, 8 de junho de 2011


OS CABRAS  ONCEIROS: A saga do velho Capitão Cazuza Sátiro.



                   JAIR ELOI DE SOUZA*



O Ciclo do Gado nos sertões do Nordeste Brasileiro, foi o lapso temporal mais reflexivo da história da ocupação dos grotões do cinzento. Ressalte-se que neste contexto épico se nutriram heróis anônimos, ícones das populações rurícolas, ribeirinhas, nos mais distantes e pobres grotões do semi-árido brasileiro, dentre os quais se revelaram os bons vaqueiros catingueiros, alguns brancos, outros, a maioria, negros, cafuzos, pardos ou sararás, saídos dos quilombos ou dos caburés, gente de pouca pabulagem e de muito agir. Cangaceiros, cantadores, e os famosos, renomados cabras onceiros, valentes, audazes, destemidos, homens de referência na proteção do rebanho bovino, usando o clavinote com pequenas adaptações e a zagaia, ajudados por cachorros comuns, “viralatas”, porém, adestrados no trato da caçada à onça entocada, quando adentravam nas furnas penhascosas.

 Nesse assunto, não precisei de folhetos cordelistas, histórias de repentistas ou de cegos cantadores nas feiras livres. O velho matuto Eloi de Souza, gente do clã dos Gonçalves da Ribeira meã do  Piranhas, confins do Seridó, com suas narrativas da lavra sertaneja, sendo comboieiro, afeito aos caminhos agrestes do sertão, que nas grandes secas se fazia tangerino “oficial” do coronel Marinheiro Saldanha, quando era responsável pelas “retiradas”, para salvar parte do gado, especialmente quando tomava o rumo das serras paraibanas e  cearenses,  sempre foi minha grande fonte de informação, quanto à vida de cantadores, dos vaqueiros catingueiros e pegas de barbatões, amansadores de poldros, cangaceiros e dos caçadores de onça, tanto  nos sertões potiguares, quanto no cinzento paraibano.

 Na verdade dois agentes predadores sempre fustigaram os rebanhos: em princípio, o índio entocado e faminto, nos últimos redutos, em sovacos de serras, nos épicos anos setecentista e primeira metade dos anos oitocentistas. E por último, com recrudescimento de ataques aos rebanhos bovinos, por toda a segunda meação do século dezenove e as primeiras décadas do século vinte, pela onça preta ou pintada, a suçuarana, parda  ou vermelha.

 Segundo o velho Eloi de Souza, matuto por ofício, que conhecia as travessias e os penhascos carrasquenhos, os peadores e os pontos de arranchação mais seguros dos sertões do Seridó, quando vinha para o Curimataú da terra de Zé Américo e nos sertões paraibanos e cearenses, quando buscava rapadura e farinha no Carirí do “Padim Cíço” Romão, a introdução ou mesmo a substituição do “gado peduro”: orelha curta e arredondada, manteúdo, de pouco leite, dócil e de bom traquejo, pelo mestiço de “indu-brasil”, este de orelha estirada na vertical, malabá, tetas grandes e grossas, os rebentos nasciam moleirões, bezerros graúdos, as vezes e não era raro, não conseguiam mamar. A mãe, após a limpeza do rebento, recolhendo os resíduos da bolsa placentária, “pelejava” o dia inteiro, protegendo o filhote, sem comer nem beber, porém dado momento e ao entardecer, tinha que se ausentar para se alimentar e beber no choradouro mais próximo. Era nessa hora que a onça preta ou pintada,  suçuarana ou parda, atacava a cria desnutrida, primeiro sagrava e com o chegar da noite fosca, carregava no lombo para os seus covis, não raro, utilizando de suas garras alongadas, atravessava quando existentes, cercas de pedras.  Aí, dizia o velho confidente e prosador, é quando entram em cena os cabras onceiros.

Nos sertões potiguares, destaque para Miguelão das Marrecas, na Serra do Doutor, morador de Joaquim Teles, coisas dos confins da Borborema Potiguar, cujo ofício era atender aos fazendeiros do Seridó nascente, e com maior desenvoltura para José Sátiro de Souza, o afamado Capitão Cazuza Sátiro, legenda máxima naquele ofício, nos confins do Seridó oeste e nas serras paraibanas, adjacências das terras potiguares, sendo um habitante da Ribeira do velho Espinharas, na Fazenda tronco, no pé da serra do mesmo nome, dista  cinco léguas da cidade de Serra Negra, já no Município de Pombal, (PB).
                                  
                                   Sobre esse dois ícones da população sertaneja, afamados matadores de onça, Frederico Pernambucano de Melo, na sua obra Guerreiros do sol, em notas e referências, fls. 335 a 336, citando o velho seridoense Juvenal Lamartine, em sua obra “Velhos Costumes do meu Sertão, traz os versos:

O Miguelão das Marrecas
Vei`da serra do Doutor
Chamado por Joaquim Teles
Para ser seu morador,
Porque perseguia onça
Como um herói lutador

E quanto ao capitão Cazuza Sátiro, morto em l911 já pegando os 83 anos de idade, este sentido preito sertanejo:

Em novecentos e quatro
Cazuxa tinha encostado
As armas de matar onça
Estava velho e cansado
Findou doente de asma
Pelo serviço pesado

Morreu o Cazuza Sátiro
O nosso herói do sertão
Grande matador de fera,
Limpo na sua missão,
Merecia uma estátua
Com a zagaia na mão”.   


Dois aspectos merecem destaque, para justificar a presença nos sertões nordestinos dos matadores de felinos. Primeiro, a pecuária era extensiva, criação em campos abertos, isentos de cercas demarcatórias, o gado era “passado” pelos seus donos, nas festas de apartação nos fins das águas, ou criado nas grandes “mangas”, mata fechada e com a presença de penhascos e serras cheias de furnas naturais ou covis, mas, onde havia a presença de ramas ricas em proteína, como o camará, o mororó, a caatingueira e a jurema. E nas terras de baixios, aluvião e  áreas ribeirinhas, destaque para a presença das canafístulas, ingazeiras, juazeiros, e finalmente nos ante-planos, as gramíneas como a milhã, o pé-de-galinha e o velho panasco, de degustação palatável pelo rebanho, quando da estação chuvosa.  Sem prejuízo da presença dos “choradouros” ou “Olhos d´água, onde a manada bebia. O segundo aspecto, conseqüência do primeiro, é que não havia o manejo diário ou semanal das manadas do gado vacum, em razão de que, sempre surgiam “barbatões”, animais rebeldes, outros  se tornavam touros guias, e passavam a comandar e proteger o rebanho ou parte deste, ganhando os grotões quase inacessíveis. Saliente-se que eram sensíveis às incursões dos felinos, quando sentiam ou ouviam os esturros ameaçadores destes, ocasião em que arrebanhavam a manada em vigilância circular, em que pesem a existência de desavenças por liderança, nessas horas, davam prioridade a integridade do rebanho. Porém, algumas reses desavisadas, e não raro acontecia, caiam nas garras dos felinos, com isso, esses carnívoros dotados de uma esperteza e mobilidade aguçadas, passaram a acompanhar os rebanhos e atacá-los de forma devastadora, com preferência por ocasião das grandes secas, com prejuízo para os fazendeiros da época.

Em sendo assim, os criadores sertanejos, além da necessidade da presença do vaqueiro, para a faina diária no traquejo dos animais, passaram a contar com a presença dos valentes caçadores de onça, alguns com exclusividade, na proteção dos seus rebanhos, e a cada felino morto crescia o fetiche das populações rurícolas pelos heróis das zagaias, o prestígio e a fama destes, eram cantadas e decantadas em folhetos nas feiras livres das freguesias, pelos emboladores de cocos e cegos rabequistas.

Poucos escribas em suas crônicas da cena sertaneja, evidenciaram na forma amiudada, como transcorreu a gesta dos cabras onceiros, é bem verdade que estes deixaram rastro de feitos heróicos, façanhas para poucos destemidos, mas é preciso que se entenda epicamente a razão da existência desses heróis anônimos e a forma como se dava a atuação desses, na agresteza dos rincões mais distantes nas terras ínvias do semi-árido nordestino. A faina do traquejo do gado, era tarefa para os vaqueiros, tangerinos, rastreadores, tratadores sedentários, mas, nenhum desses tipos, tinham aptidão, para enfrentar as feras famélicas, nos anos de secas, em seus covis nas entranhas dos penhascos, como faziam oscabras onceiros. Geralmente agiam aqueles em grupos, encourados com gibão, perneiras, peitoris, montados a cavalo ou em burros mulos. Já estes, eram heróis solitários, ganhavam os boqueirões, desfiladeiros e abas de serras, penhascos íngremes, quase inacessíveis. Entre os poucos dos que oficiavam na caça à onça faminta, parte era composta de agregados de médios e grandes criadores, viviam na miséria, recebendo pouco pela faina perigosa, embora fossem sempre ovacionados e decantados pelas populações sertanejas. Mas, quando chegavam à ante-sala da velhice, baixavam as armas, às vezes seqüelados, passavam a viver de favores da família.

velho Eloi de Souza, que se iniciara muito cedo na vida de comboieiro como matuto almocreve, conhecendo os caminhos entrecortados pelas serras paraibanas e cearenses, peadores e pontos de arranchação, quando das idas ao Cariri, e especialmente nas grandes secas de quinze e  dezenove, e cá já nas eras de trinta, exercendo o ofício de tangerino, responsável pelas “retiradas” do Cel. Plínio Dantas Saldanha, o velho Marinheiro, para  a Ribeira do Espinharas a começar das goelas do Teixeira. Conviveu com muitos que conheceram o Capitão Cazuza Sátiro, exímio matador de onça, que dava persiga às reses naqueles sertões bravios. Era um dos poucos aquinhoados, a exemplo dos Pereira Valões, nos sertões de Pernambuco. Pois, possuía uma bela semente de gado, pastando nas encostas da Serra do tronco onde tinha fazenda de mesmo nome. Portanto de entender-se que tinha no ofício de matar onça, a áurea de um guerreiro valente à moda sertaneja, que desdenhava dos riscos sempre presente. Por outro lado, não havia em si, uma matança indiscriminada, a ação exterminadora era direcionada ao felino faminto e agressivo ao rebanho. Ouviu o Velho matuto seridoense da ribanceira do Rio de Piranhas, muitos histórias da gesta do renomado caçador de onça naqueles rincões. Contara que certa vez, tendo sido aquele convocado a “dar cabo” de onça-parda, que dizimava o rebanho na aba de uma das serras do Catolé do Rocha, trecho que não lhe era familiar, mas tinha o adjutório de positivo rastreador da região, depois de vários dias de levantamento dos covis, de trabalho rastreador ao felino marcado para morrer, sem sucesso na empreitada, chega finalmente ao quinto dia e ao penhasco onde estava o animal enfurnado. Sentindo sua presença, a fera dava esturro de intimidação ao estranho que ameaçava seu território, não sabia aquela que estava diante do seu maior e mais temível inimigo, o  velho experiente, Capitão Cazuza Sátiro. Apesar dos esturros ameaçadores, não dava sinais de sair da furna pedregosa. Isso preocupava o velho onceiro,  que de logo tratou de acomodar seus cães, e fazer rápida incursão para desvendar o mistério. Pela fresta de rochedo à carga, próximo a gruta, percebeu tratar-se de fêmea parida, com dois filhotes a amamentá-los. A alma sertaneja valente, do velho e audacioso Cazuza partira-se. É que nunca deixara de ter respeito por mulher prenha ou dando leite a “menino de colo”. Relutante em princípio, era a primeira vez que se encontrava com uma fera e não fazia o “trabalho”, apesar de exposta. Logo tomara a decisão mais travosa de sua vida, justamente ele que sempre teve alma de aço e de luta. Era um colecionador de carcaças dos felinos abatidos, agia quase sozinho na hora “H”, embora tivesse um ajudante de sua confiança e seus cães adestrados, fustigadores de felinos. “Batera em retirada”, a caminho de volta para casa do fazendeiro solicitante. E ao chegar, antes de ser provocado, indagara daquele: Se lhe confiava em venda dois carneiros “iguaiados”, e se podia abatê-los ali mesmo, precisava alimentar uma mãe com filhos pequenos. O contratante não se opôs, mas indagou-lhe, deu cabo da fera? Respondeu o velho onceiro: Minha alma é valente e destemida, mas sepultar crianças, é uma tarefa penosa, venho nos “fins das águas” e faço o serviço, não lhe custa nada.

Ao ouvir o relato desse meu ancestral de “quatro costado”, o velho Eloi de Souza, a minha grande universidade da vida, quanto aos informes dos sertões bravios, como jovem escriba, entendi porque a gesta sertaneja dos cabras onceiros, é magnânima. É que tem suas tipicidades valorativas na saga única de um povo com bravura diferente.


·         É PROFESSOR DO CURSO DE DIREITO DA UFRN.

2 comentários:

Franpes Santos disse...

Ainda menino, na Serra do Teixeira, Paraíba, ouvi contar histórias de Cazuza Sátiro, famoso matador de onça, que usava uma arma chamada zagaia...

Franpes Santos disse...

Quando ainda menino, na Serra do Teixeira, na Paraíba, ouvi muitas histórias de Cazuza Sátiro, famoso caçador de onças.

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