CRÔNICA: - QUE VOU COMER HOJE, MEU DEUS?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

            Morava perto de minha casa uma velhinha, Maria, como inúmeras que existem por aí. Todos os dias, à mesma hora, escutava-a lamentar-se, indagando aos céus qual alimento a saciaria naquele dia.
Não. D. Maria não era indigente. A idade, já avançada, havia-lhe roubado a razão. A fome que a fazia sofrer era irreal (achava graça nas tragédias e chorava à toa, pelo mais banal dos motivos). Quem não a conhecia revoltava-se: "Que gente desumana! Deixar uma velhinha passar fome dessa maneira!" A vizinhança, porém, dividia-se entre o riso e a compaixão.  Afinal, não é assim que nós, brasileiros, costumamos tratar nossos idosos? Estorvos para uns, palhaços para outros? Vergonhosamente, sim. Nada de lhes respeitar os cabelos brancos. Sem essa de lhes ouvir a voz da experiência. O que hoje realmente importa é o novo, o moderno, o avançado. É a globalização da imbecilidade.
         Essa situação, apesar de trágica, não é a principal. No caso de D. Maria, o que mais me chamou a atenção foi o temor dela em não ter o que comer. Em sua senilidade, ela encarnava o pesadelo que tira o sono de milhões em todo o mundo. Estes, porém, não gritam e, quando o fazem, não são levados a sério. No Brasil, país dito cristão, onde muitos também não dispõem do "pão nosso de cada dia", é incompreensível como uma situação tão brutal não revolte os que a vivenciam. É preciso muita brandura para não sair por aí saqueando lojas e supermercados. É que ainda se vive a idade da razão, que manda respeitar a propriedade dos outros mesmo quando nada se tem para também ser respeitado.
Enquanto isso, D. Maria grita todos os dias, comportando-se como uma verdadeira porta-voz dos sem-alimento. Como é dada por gagá, ninguém a escuta. No mundo real ou na ficção, a fome dos outros é sempre menosprezada.

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