CONTRIBUIÇÃO DO LEITOR

sábado, 21 de abril de 2012



A ÚLTIMA CIDADELA NA NÉVOA!...

Jair Eloi de Souza (*)


O brilho da noiva da noite estava ofuscado. Chuvisco coado, tocando seco na pele, mais para o cênico de uma névoa em retirada, pois os ventos de travessia alongavam sua forma. No entanto, era o único refúgio para os que caminhavam na direção da choça campônia. Havia muita escuridão, caminhos cheios de gravetos, galhos tortuosos, coisas que produziam passos trôpegos e tateantes com breves espaços de um andar firme. O silêncio era sinistro e ao mesmo tempo amistoso, circunstância que podia garantir um vago sucesso daquela que seria, talvez, a última convenção dos que habitam os descampados do tempo. A jaguatirica fora a primeira a chegar, viagem longa, embaraçada, tivera que romper o cipoal da caatinga fechada o tempo todo. Sua comunidade tem poucos exemplares, possui pele aveludada, cor ruivo-amarelada, com manchas redondas orladas de preto. Sua alma habita os salões nobres sob a forma de pele, por isso não lhe dão sossego. Arredia e à espreita de qualquer imprevisto, indaga do chefe de cerimônia, um velho papagaio de penugem gasta, sobre o evento, de quem recebe informação que quase todos estão chegando à tenda, com exceção dos cervos, pois, na última lua do mês das cobras, um membro da comunidade havia sido trucidado nas campinas da Chã da Graúna e contaminara a espécie de banzo e melancolia. Obviamente, não se podia falar mais na presença da grande pernalta, a majestosa Garça Parda. Esta não mais habita as lagoas do sertão. Mudara-se para os alagadiços das terras maranhenses. Os patos de crista, majestosos, eram assunto de conversa de nossos ancestrais, dizendo de sua beleza quando desapareceram.

A hora avança, os personagens convidados convergem para a chegança com misto de langor e esperança. Num estalar de olhos, a conferência está repleta. Muitos já não se conheciam. Personagens dos mais longínquos rincões, como o jacu, de andar sutil, silencioso, antigo habitante dos juremás, conhecido como o “peru da caatinga”. A sururina, com seu canto triste que se fez personagem na composição “Luar do Sertão”, em verve de Catulo da Paixão Cearense. A Asa Branca, vinda de longe, habita em suas horas de reserva num sovaco de serra lá pras bandas do Seridó, não faz mais a sinfonia vesperal com seus arrulhos no velho angico, quando da cata de resíduos de milho do inverno passado. Vida reclusa, para quem já foi a fênix da resistência e do apego ao Sertão, no canto melodioso do velho Gonzaga, também se fazia presente. Os Desdentados: o vegetariano tatu-galinha, o peba glutão e anárquico, capitaneados pelo lerdo e paciente degustador de cupins, o velho Tamanduá-Bandeira, acabavam de chegar. A Acauã, com seu caráter agourento e precavido, atrasara-se pretensiosamente. É hora de trabalho, a oração inicial aos deuses dos descampados do tempo, o olhar firme de cada espécie, elegem o tema: “O sonho de viver nas mesmas terras que viveram os seus antepassados”.

Para o fim, a discussão começara pela súplica por espaço em mata. Isso traria a comida, o direito de viver e de reproduzir. O chefe do cerimonial, louro falante, tinha lá suas queixas iniciais: era costume anual, fazia com sua companheira a postura em velho cupim na grota da Serra do Cuité, no sítio São Francisco. Viagem longa, vinha das matas de Pernambuco, nunca conseguira levar seus filhotes para seu habitat natural. Véspera da volta, um velho, de nome Zé Agostinho, tirava os filhotes encanhãozados. O denunciante e companheira passavam três dias em redor do ninho, com tristeza, contemplando o vazio, e lá se iam de volta, em companhia da intensa melancolia pela perda dos seus. Em sequência, a rolinha branca dissera: minhas primas-irmãs, as versões cascavéis e roxa (caldo de feijão – no sertão) são fugitivas da pólvora, estão confinadas às ilhas ribeirinhas e grandes mangas, nos latifúndios do baixo Piranhas-Açu, e às matas do baixo Jaguaribe. Não as vejo faz tempo. Por fim, ainda, das pombas columbinas, falou o juriti: Sei que sou exigente, faço meu ninho entre os espinhos na forquilha do mandacaru, no caatingote fechado, onde externo os meus arrulhos, que sempre são alongados e tristonhos, para disfarçar o lugar em que me encontro.  Não tenho a liberdade em canto na campina aberta.

Exaurindo o espaço aberto à discussão, falou um velho canção, morador das empenas da Serra do Cavalcante, no Município de Caicó, matador de cascavel de onze enrugas e sempre de forma festiva, que disse:  “moro na caatinga estorricada,quase não tenho água, vivo da missão inglória de matar serpente, é meu alimento, e, no limite onde termina a vida e começa a morte, também sou caçado, os gaioleiros me perseguem; não me querem morto, só lhes sirvo vivo; portanto, está em jogo a minha liberdade. Mas ouço falar que, no templário da justiça dos homens da lei, tem um chefe ministerial que toma arma de atrevidos e, quando avisado, protege a natureza e a nós; sugiro que tenha aviso de toda nossa situação, quem sabe pode nos atender”.

A névoa mesmo em plena era dezembrina, teimava em cobrir a mata, parecia um capricho dos deuses, que, mesmo em bocejos ante a alongada conferência dos que habitam o seio da mãe natureza, estavam vigilantes com os que sonham, mesmo que esse sonho seja apenas um sonho em névoa, com ventos de travessia.

Chã da Graúna, em lua nova dezembrina/2008.

(*) Professor do Curso de Direito da UFRN.

1 comentários:

Anônimo disse...

Ainda bem que eu tenho um Dicionário, assim posso ler mais tranquilo os textos de Jair de Trojota. Será que Chico de Telmo e Peru de Chico Elói, tem?

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