CONTRIBUIÇÃO DO LEITOR

domingo, 1 de abril de 2012


UM VELHO COMBOIEIRO CONTADOR DE HISTÓRIAS

EPISÓDIO I - A GRANDE SECA DE QUINZE

Jair Eloi de Souza (*)

As manhãs eram quentes, mas o vento do norte soprava nas tardes setembrinas, não havia apanha de algodão, grassava uma primavera seca, ardente e voraz do ano de quinze. Houve frustração de safra e os campos se encheram de carcaças de gado, ao sertanejo restava, como último gesto, desatar as amarras dos chocalhos e estender o olhar pesaroso de derrota para o animal que jazia. As cacimbas no alvéolo no velho Piranhas se enterravam de chão adentro, apenas alguns filetes d`água migalhados, sobrosso não só de mortandade completa dos animais, mas também dos viventes daquele rincão nordestino. A barriguda não florara ainda, as rolas continuavam a fazer ninhos embaixo dos arbustos ribeirinhos, a asa branca faminta, sem contar com os resíduos do milho de roçados, montara guarda com seus arrulhos no angico seco, na forma lenta e tristonha, tudo isso no trajano de Chico Raimundo. Por esses tempos corria notícia de atuação de grupos isolados de cangaceiros, havia um ano, pouco mais ou menos deposto as armas, o lendário Antônio Silvino estava a cumprir a desobriga de seus crimes em Recife e alimentava a verve de cantadores a contar a silhueta de sua saga e de suas façanhas, em versos, nas feiras de todos os quadrantes do Nordeste. As viagens ao cariri, à procura de farinha e rapadura quase nenhuma, a burrarada faminta e esquelética não botava a viagem, e os poucos matutos que se aventuravam eram vítimas de assaltos das hordas cangaceiras, remanescentes do homem do rifle de ouro ou mesmo maltas avulsas, principalmente a partir do vale do rio do peixe, em terras paraibanas.

O xique-xique era consumido em larga escala, a polpa de macambira ribeirinha servia para fazer cuscuz n’agua e sal, as aves aquáticas haviam fugido para os alagadiços do Maranhão, a sobrevida da fauna sertaneja ficava por conta da existência ainda, de alguns roedores, como o preá, o mocó e o punaré de oco. As aves da caatinga, como o urubu e o carcará, faziam a festa no carniçal e nos animais que viviam os últimos estertores, tendo aqui e acolá, de forma permeada, o aparecimento de seriemas de ecos secos e babélicos, a flagelar répteis da flora espinhenta como o cascavel, a jiboia e alguns lagartos de pequeno porte. Nesses tempos era comum a morte por enfraquecimento, nomínica atribuída à loucura e à doença do peito, como chamavam a tuberculose. Tinham lugar as rezarias noturnas em casas dos mais devotos, espécies de beatos paroquianos, homens adereçados de rosários trazidos do Juazeiro e tidos na comunidade como possuidores de fé diferenciada, em razão de preconizarem sob os desígnios de Deus, fatos do futuro, como seca, enchentes, pragas, doenças epidêmicos em animais e nas gentes desvalidas daqueles sertões bravios. As rixas, por vezes dissipadas por juízes arbitrais, papel desempenhado pelos valentões, ou por coronéis de bom senso, usando da resina da amizade com as partes litigantes ou da força feudal, com prejuízo para o não simpatizante de sua posição política.

Não havia trato para casamentos nas festas de fim de ano, os noivados não foram anunciados na quadra chuvosa, pois esta não acontecera, não houve a safra precoce do algodão rasga letra, o fato mais importante esperado por aquelas gentes, era a notícia das primeiras chuvas de manga no Piauí, pois estas representavam, como ainda hoje, prenúncio de inverno no chão nordestino. Não havia vazantes nos açudes, batatas empaioladas. Com a renovação da folhagem dos juazeiros, surgiam, na forma escassa, esqueléticos camaleões, que eram caçados a olhos de lince pelos sertanejos famintos e ocasionais. A ansiedade do povo se voltava para as súplicas aos céus, às idas ao Juazeiro de Padre Cícero, para deixarem suas oferendas e clamar por chuva para encurtar a seca inclemente.

Por esses tempos a caatinga nordestina era um braseiro acinzentado, mudo, sem vida, só o sibilo do cascavel peçonhento, nas veredas estorricadas e pedreguentas se podia ouvir. As abelhas ganharam os caminhos das matas cearenses, não houvera a presença de aves de arribação, as poucas existentes não ultrapassaram a estação da maturação dos frutos da favela. A morte dos homens, mulheres e crianças era uma questão iminente, aquelas tísicas e prenhas com uma agudez anêmica, não havia rapadura pelo menos, e estas as doenças de menino, como o crupe, respondia pelas noites de excelências cantadas, em razão da morte dos infantes que se iam de forma prematura.

O sertanejo, de todas as formas, procurava os sinais que prenunciassem a próxima quadra chuvosa, a barra quebrando ao amanhecer, trazia o vermelhão quão lavras vulcânicas incandescentes, o vento do norte continuava sibilando, o caburé de orelha, pequenino, mais de uma simbologia ímpar para prenunciar as primeiras chuvas, quando externava o seu piado de forma incontrolável, continuava mudo, embora nunca tenha abandonado sua morada nas oiticicas centenárias do feudo matriarcal da aguerrida Severina do velho Justiniano, no riacho do saco. O canto choco dos anus pretos não aparecia, as enxuís não mudaram a entrada dos seus ninhos com suas cachopas entulhadas de fios. A velha acauã também não aparecera ainda, sua mudez era um mistério, principalmente para o sertanejo seridoense que nunca deixara de avistá-la nas tardes dezembrinas ou no quarto crescente quando das noites estreladas. A paciência se esgotava, forragens minguadas nas áreas ribeirinhas, umbuzeiros desfolhados e seus tubérculos secos e laxados pela ação do homem sedento, sem floração. As festas natalinas ficaram nos limites de rezarias suplicantes, as águas de março e o abril chuvoso eram uma visão tão longínqua e imaginária que só as lágrimas de mulheres e homens famintos regavam o livre pensar e o longo penar. Assim, o velho matuto comboieiro Chico Elo descreveu a seca de quinze, uma recordação da casa dos mortos nos sertões bravios do meu Seridó.

Na Chã da Graúna,
A lua ainda era quarto crescente no mês das cobras/2008.

(*) Professor do Curso de Direito da UFRN.

2 comentários:

Anônimo disse...

No afã de passar uma aura de erudição, os textos de Jair de Trojota se tornam maçantes. Jair, você tem olho para enxergar o clímax de certas realidades. Valorize esse dom, não canse seus leitores com uma prosa metida a besta.

Anônimo disse...

Nao e JaiR de Trojota e Jaiir de Trochota.

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