CONTRIBUIÇÃO DO LEITOR

sábado, 28 de abril de 2012


QUANDO OS DEUSES TÊM SEDE NO INGÁ!

JAIR ELOI DE SOUZA (*)


Grassava o ano de 1957, fins das águas, já era o pós Santana. Na sua última fase, padecia em minguante a noiva da noite. Em gotejo lacrimal notava-se uma bolandeira fosca, com cênico de cristais d’água, que vez por outra remetiam à caatinga, doses compassadas de chuvisco coado tocando na pele. Havia um prenúncio de que a cruviana madrugadenha seria de atormentar qualquer cristão. Mas, ainda permeava a primeira madorna, os deuses bocejavam compassadamente, como a esperar que um velho galo goguento executasse fora de hora, sua sinfonia sinistra, denunciando os malfazejos vindos das trevas do além. Aliás, o palco estava preparado, a névoa meandrava as empenas das serras e se assentava em suas chãs “cachimbando”, como se a envolver a silhueta mítica do último Rei das tendas tarairius, trucidado com os seus, pelo terço paulista de mando do Capitão do Mato Domingos Jorge Velho.

Naquela noite um mensageiro, que retornava das bandas do Caicó, acorrera até a tenda suburbana do velho Eloi de Souza e rompe o silêncio com o tradicional prefixo das terras do cinzento: oh! de casa..., de madorna branda, a velha Ana Vicença da Conceição, minha avó paterna, caqueando o seu rosário benzido pelo seu padrinho do Juazeiro, responde de imediato: oh! de fora. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo diz o visitante. Pra sempre seja louvado responde a anciã Aninha. O estranho se identifica e adianta é Themístocles Cavalcanti cabra Chico Eloi. Venho de paz, trago carta do Dr. Juiz do Caicó e tenho que levar a resposta amanhã bem cedinho.

A missiva tinha o destino da Fazenda “Amparo”, na freguesia de Nossa Senhora dos Aflitos, feudo do velho e fiel udenista João Bezerra, que mantinha em seu copiar, uma estação de desasnar meninos daquelas cercanias rurícolas, cuja Mestra-Escola era Dona Evilásia, sua esposa, um primor de docente, que deixaria com sua ancestralidade divina de educadora, a melhor ilustração jurídica, o Jurisconsulto Robson Maia, que coincidentemente fora nosso pupilo no Curso de Direito da Universidade Federal da UFRN, e atualmente Professor da PUC. O zeloso Eloi de Souza, um recitante poético de crina acesa, compreendera que sendo sigilosa a missão, tinha que cumpri-la antes do amanhecer. De chofre tira puída ceroula, e mete-se em surrada calça de brim ordinário e camisa de algonal, dá de mão da velha roçadeira adereçada de cabo de jucá, parte para abrir a porta de cima destravancando a tosca fechadura de aço, e destalando a taramela da porta de baixo, nos preparos para partir a cumprir a tarefa noturna, que lhe fora confiada.  Imaginava que iria sozinho. Ledo engano, no seu mocotó, estava um meninote nos seus cinco anos de idade, que nem sequer sonhava com o banco de escola, quanto mais tornar-se escriba da tenda sertaneja, embora ainda hoje pela lerdeza, continue na estação pagã.

O velho aldeão do clã dos Gonçalves da Ribeira meã do Piranhas, concorda com a companhia do seu infante neto mais taludo. Na caminhada noturna, para dissipar o tempo e encurtar a distância, dá-se a dissecar sobre fatos ocorridos durante a interventoria de Mário Câmara, tempos de dureza e arbitrariedade, e que foram presenciados por ele, antes de contornar a idade meã. Naquela noite, o velho Eloi de Souza, já contava com 59 anos de idade, macerado pelo pêndulo do tempo e por longa travessia no coice da burrarada, atanazado por reumatismo crônico, cartilagem gasta na faina da almocrevaria, que lhe consumira os dotes varonis da puberdade dos tempos. O meninote impúbere, pés descalços, trajando calção curto de algodãozinho e tosca camisa feita de arranca-toco.  Aqui e acolá, era alçado ao ombro daquele ancião de afeto resinoso, que a tira colo, conduzia surrado badaneco de caqui Floriano, onde albergava seu quicé afiado, o fumo de rolo e nacos de palha seca e fina de espigas de milho, para o fabrico de cigarro e tirar baforete inibidor do sono, pois, estava em missão missivista secreta, que deveria ser executada antes da penumbra da noite se exaurir, quando muito alcançar as raias encarnadas do quebrar da barra.

Fato é, que naquela noite, que em específico, narrara o inacreditável assassinato do Dr. Otávio Lamartine na Fazenda Ingá, no fatídico ano de 1935, pelo truculento Tenente Oscar Mateus Rangel, que exercia a função policialesca de anspeçada mais graduado na Região do Seridó, pois era Delegado Regional. O Dr. Otávio Lamartine, era graduado em agronomia na universidade de Lavras, nas Minas Gerais, e pós-graduado nos Estados Unidos da América do Norte, Deputado Estadual, filho do não menos ilustre Juvenal Lamartine, Governador deposto por Getúlio Vargas, no ano de l930, por imposição deste exilado em Paris, deixara seu filho administrando suas fazendas de algodão e do criatório.

Agora mais recentemente, lendo a obra “História de uma Campanha”, do meu ilustríssimo Professor de Direito Constitucional, Dr. Edgar Barbosa, “No dia 13 de fevereiro, (1935), quatro dias antes da realização das eleições complementares de Acari, era assassinado em sua fazenda “Ingá”. E acrescenta o ilustre mestre: “Otávio Lamartine fora morto por uma força de polícia comandada pelo tenente Oscar Mateus ernoRangel, figura do Estado-maior de governo, pessoa de confiança do interventor. Essa força que se constituía de elementos que exerciam funções policiais em Acari e Parelhas, entrou de caminhão pela fazenda “Ingá”, invadiu a residência de Otávio Lamartine, e, no alpendre da casa, diante da família da sua vítima, trucidou-a quando ela apresentava ao comandante Rangel uma ordem de habeas corpus de que se munira.

“O assassínio do meu filho é apenas um caso a mais na imensa série dos que têm praticado o interventor, com o silêncio aquiescente do governo”...(Juvenal Lamartine em carta ao Ministro da Justiça – Rio”.

A manhã ensolarada em lua crescente/2012.

(*) Professor e Dirigente do Curso de Direito da UFRN. 

1 comentários:

Anônimo disse...

Essa é mais uma das excelentes matérias que o ilustre jardinense, Dr. Jair Eloi de Souza, como ele sempre tem deixado bem claro, da ribeira do piranhas, vem dando as gerações presentes e futuras gerações - Francisco Borges.

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