CONTRIBUIÇÃO DO LEITOR

sábado, 7 de abril de 2012


A SERRAÇÃO DA VELHA, A MALHAÇÃO E EXECRACÃO DE JUDAS NO SERIDÓ

                JAIR ELOI DE SOUZA (*)

O Seridó católico apostólico romano foi e continua sendo fervoroso e tradicional na prática dos costumes cruzmaltinos. A Igreja Católica sempre presente e com papel relevante, senão motivador de comemorações, cuja vertente é o calendário litúrgico com muitos eventos das práticas dos povos iberos. A quaresma, tempo que medeia os dias entre a quarta-feira de cinzas e o domingo de páscoa, no velho Seridó em tempos idos, não se comia carne de sangue nas quartas e sextas-feiras, jejuar obrigatoriamente, nos dias grandes da Semana da Páscoa, não tomar banho na sexta-feira santa, nem qualquer tipo de bebida,  tudo isso sem prejuízo de atender ao velho confessionário, às missas e ao novenário, com destaque maior para as missas do sábado da aleluia e do domingo de páscoa. Num desses dias, havia o costume respeitoso “do beijar o anel do Bispo”, coisa que fiz muito ainda pequeno junto a Dom Manuel Tavares.

Era também tempo de castigo para os pobres, não se podia matar caças do mato, como os tatus verdadeiros, as marias-tacacas, os tejuaçus, abater nambus no voo, ou as aves aquáticas como os carões, o marreco, a galinha d’água e o paturi da asa branca. Castigo maior para os meninos, os pais recolhiam desses os estilingues, atiradeiras feitas de liga atadas a gancho de pereiro da caatinga e laçada de couro para arrojar pedras, espécie de bodoque. Era proibido matar qualquer passarinho, especialmente as rolinhas nas suas espécies: branca, caboclinha, caldo de feijão e a lindíssima rola cascavel, que habitava as oiticicas de Dona Severina de Justiniano, no rincão do “riacho do saco” em Jardim de Piranhas, porquanto, coincidentemente, era a época da reprodução e seus ninhos estavam cheios de ovos e filhotes. Tais proibições não obedeciam a qualquer lei ou norma existentes, vindas do poder público, mas às normas da igreja, que tinham profunda reflexão e obediência pela população rurícola dos sertões seridoenses, sob pena de cometer os pecados veniais ou mortais, segundo o juízo de valoração da Santa Igreja Católica.

Esses eram os hábitos dos que professavam a fé das tábuas de Moisés, trazida de terras ultramarinhas sob a bandeira da Cruz de Malta, durante toda a quaresma. Evento litúrgico profundamente reflexivo e obedecido pelo homem do sertão do Seridó. Atendia duas vertentes de cunho religioso e de fé. Reafirmar o compromisso cristão da solidariedade humana na terra sertaneja e ainda a reprovação a Judas Sicariotas, o homem dos trinta dinheiros.

Mas, lá nos confins do Seridó, na Ribeira meã do Rio Piranhas, berço de Padre João Maria e de Amaro Cavalcanti, os tempos da quaresma e da páscoa tinham lá o seu lado presepeiro, a malhação e execração de “Judas Sicariotas” era pouco. O piranhense, homem astucioso, de inteligência mordaz e satírica, por não dizer de jocosidade nos limites da intolerância, tinha um ritual profano, diferente de quase todos os povos do Seridó. Embora sempre contrito e temente a Deus. Levava avante “A Serração da Velha” na quinta-feira santa, popular costume de zombaria madrugadenha a velhas e velhos asquerosos, que facilmente se ridicularizavam. Todo ano escolhiam um casal dessa espécie, para homenagear com um protótipo e semelhante boneco maltrapilho de Judas, e sair noite e madrugada afora, azucrinando a vida desses inocentes anciãos.

No ano de mil novecentos e setenta e quatro, a exemplo do ano de  vinte e quatro, a vazão do Piranhas galopara além das terras ribeirinhas, tomara os baixios e ganhou o tabuleiro carrascal. Em quase toda quadra invernosa. O Judas e a Judas foram feitos à imagem e semelhança de JOAQUIM BOQUINHA e sua esposa, não havia escolha melhor, tratava-se de ancião que tinha um olho estourado, que mais parecia uma bola de gude azul esbranquiçada, de tamanho avolumado, cabeça grande arredondada, uma criatura para assombrar qualquer um, em noite fosca, e que odiava crianças. Quando uma delas passava por perto, não perdia a oportunidade e passava-lhe o cajado na cabeça. JUVENAL BARÃO, velho importuno e áspero, fora o escolhido para ser serrado na semana santa, ou seja, receber as figuras de Joaquim Boquinha e sua esposa na forma do Judas e da Judas. Morava o velho montador de burro brabo nos velhos tempos, à margem da estrada que liga Jardim a São Bento da Paraíba, numa casa de taipa, tinha uma pequena gleba margeante ao rio, onde plantava milho, feijão, sendo também criador de gado vacum. Casado com uma velha grande e pampa, de nome Leopoldina, que tirava leite de vaca em pé, pois tinha a espinha dorsal quebrada, daí dormir em cama com colchão de junco. As águas de março já tinham passado, era abril, tabocal de milho maduro começava no beiral da casa do velho rurícola. O ritual da Serração era anunciado pelos búzios de sonoridade zombeteira. Nessa noite, o mestre da presepada era o aleijado Manoelzinho de Manoel Antônio, exímio professor no Riachão dos Borges. A trupe adereçara-se de chocalhos grandes e entrara no milharal do velho Juvenal: telengo, telengo-tengo, noite fechada, nada se ouvia além dos toques dos velhos chocalhos, mas, aqui e acolá, a cabroeira caluda quebrava uma taboca do milho. A velha Leopoldina, acordando, chama o marido e diz: “O gado dos caboclos de Virgino tá no roçado”. Havia velha encrenca entre aqueles ribeirões. O velho sertanejo reuniu forças e desapregou-se da rede e pôs-se a preparo para retirar o gado invasor. Nesse ínterim, JOAQUIM BOQUINHA, que havia morrido há pouco tempo, lá estava na porta de trás, na figura maltrapilha do Judas. Ao abrir aquela, o velho ribeirão recebe o abraço do amigo falecido e grita pela mulher: “não estou no céu, mas aqui está comigo compadre Joaquim Boquinha”. Eis aí a deixa e o sinal para as gargalhadas estourarem na pradaria. E dar lugar para o aleijado começar o ritual da serração da velha, com os búzios comendo no cento, quando fez a anunciação: “Não se impressione, Barão, Joaquim Boquinha seu compadre, veio lhe fazer um convite. São Pedro não tem no céu amansador de poldro e lhe informaram que você é da faina e faz bem feito”. O Velho Juvenal, sertanejo astucioso e conhecedor da índole presepeira, como também do timbre de voz do seu interlocutor madrugadenho, não se fez de amedrontado, mas, espraguejando para sua mulher Leopoldina, disse ser aquela presepada “arte” do aleijado, do seu compadre Manoel  Antônio, e que, no  “quebrar da barra", iria fazer queixa a este. Ao amanhecer, passa o jocoso Ananias Gonçalves, seu irmão mais velho e vizinho, e diz: “Barão, presepada não é crime, deixa compadre Mané em Paz, mais vale nossa velha amizade do que levar a sério essa zombaria que os meninos fazem nesses tempos de semana santa. Judas era apóstolo de Cristo, hoje é a velha serrada, e isso acontece todos “los anos”, sem a reprovação do homem lá de cima”. Juvenal Barão absolveu o conselho do mano mais idoso e preservou a amizade com o seu compadre ribeirão, que também era do clã dos Gonçalves. Isso tudo se dava da noite de quinta para a madrugada de sexta-feira santa.

A malhação e execração de Judas, em Jardim de Piranhas, se davam da madrugada de sexta-feira para a manhã de sábado da aleluia. Ao amanhecer, lá estava o velho traidor na forca, circo montado e ornamentado pelos jasmins tirados do velho cemitério público, os atiradores já estavam a postos, para torar a corda da forca à bala. Revólveres trinta e oito, vinte e dois, pistolas, espingardas à rolimã, garruchas antigas, parabélum, enfim , era um arsenal para ninguém botar defeito, contanto que cortassem a corda da forca à bala. Ao cair o velho Sicariotas, cujo espólio do vestuário nada tinha de véstia sertaneja, nem de vestal romana, ficava nos limites de palitó de casimira, gravata Renner e sapatos fox, no melhor padrão Valentino, que sempre vocacionalmente ficava com o negro Pretinho de Antônio Boião, depois de levar muitas lamboradas no espinhaço. Estava feito o reparo no homem que traiu Cristo nas terras do Seridó crespuscular.

Ao dedilhar esses rabiscos sobre as coisas do meu sertão, já era madrugada, a mãe-da-lua em choro na sua estação de melancolia protestava contra a cruviana madrugadenha, e eu estava na Chã da Graúna, o meu feudo rurícola na Borborema potiguar, onde os Deuses conversam com a natureza.

Os tempos eram de lua minguante nos mês das cobras/ 2007.



(*) PROFESSOR DO CURSO DE DIREITO DA UFRN.

5 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns Dr.Jair pela excelente matéria narrando os fatos do nosso estimado Richado de guerra - Francisco Borges

Anônimo disse...

Eu pensei que Jair Elói era de Jardim. Mas ele é de Souza?

Anônimo disse...

Nada disso, Jair é de Jardim, apesar de não saber ao certo onde nasceu, mas ele nunca negou nem preteriu a terra de Pe. João Maria. Francisco Borges

Anônimo disse...

Tudo bem. Mas qual o ser mais enfeitado de Jardim de de Piranhas de todos os tempos?

a - Fernando de Aprígio
b - Tuca de Escolha
c - Marcos Maia
d - Jair de Trochota
e - Geraldo Monteiro
f - A Burra de Benedito Biricó, dia de feira
G - O cigano Bala Verde

Anônimo disse...

Mais, menino!? Tiraram Chó Lopes das alternativas, logo meu pavão preferido, eu não digo mesmo. Tão brincando. Se eu pegar esse anônimo que desclassificou Chó, eu lasco.

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